19 de nov. de 2023

Capitulo 8 - A reabilitação da lesão cerebrovascular

 

Capítulo 8 - João Branco, Bruno Mendes, Filipa Rocha, Sandra de Oliveira, João Pinheiro

Acidente vascular cerebral (AVC)

A reabilitação médica e abordagem funcional do doente com lesão cerebrovascular

 

1 - Principais objetivos formativos.

·       A clínica médica do AVC

·       O programa de reabilitação do AVC

·       A organização de cuidados e elementos de prognóstico

 

2 – Introdução - Segundo a Organização Mundial de Saúde, o acidente vascular cerebral (AVC) é definido como um comprometimento neurológico focal ou global, com provável origem vascular, de ocorrência súbita. Difere do acidente isquémico transitório (AIT) por apresentar alterações clinicas com uma duração superior a 24 horas (ou morte).(1)

A hemiparesia é a manifestação neurológica mais característica acompanhando diferentes síndromas neurológicos.

Neste capítulo focaremos o programa de reabilitação dos doentes com sequelas de AVC.

De referir que muitas considerações têm sido efetuadas relativamente ao valor (absoluto e relativo) de um programa de reabilitação, sendo cada vez mais consensual que um programa sistemático pode aumentar o desempenho funcional do paciente, interferindo nas consequências de doença (deficiência, atividade e participação), na precocidade do retorno ao domicílio e na redução da mortalidade. Cria desta forma condições para um mais completo processo de integração na comunidade.

As relações entre a disponibilidade neurológica e a evolução funcional são assimétricas e nem sempre passíveis de correlação; o programa de reabilitação vai explorar múltiplas disponibilidades neurológicas interferindo também na plasticidade neuronal.

 

3 – Epidemiologia - O AVC é uma das principais causas de morbilidade e mortalidade na comunidade. De acordo com o Global Burden of Disease 2013, apesar da redução nas taxas de incidência e de mortalidade, não se tem observado uma diminuição no número absoluto de casos. Isto dever-se-á não só ao envelhecimento da população mas também ao aumento na prevalência dos fatores de risco cardiovascular.(2)

Em Portugal, estima-se que ocorram 6 AVC a cada hora, dos quais resulta 2 a 3 óbitos.(3) A incidência é de aproximadamente 1,9%, sendo mais frequente em indivíduos do género masculino, com idade compreendida entre os 65 e os 74 anos.(3) Apesar da redução da mortalidade para menos de metade desde o ano de 1990, a doença cardiovascular é ainda a principal causa de morte no nosso país (35% dos óbitos), com números superiores no AVC em relação à doença isquémica cardíaca.(4, 5).

 

4 – Fatores de risco - São inúmeros os fatores de risco sido identificados no AVC. Dentro dos fatores não modificáveis são referenciados a idade (risco duplica por cada década acima dos 55 anos), a raça (maior risco na afro-americana, seguida da caucasiana e asiática), o género (maior risco no masculino), a história familiar e a existência de AVC prévio.(1, 6)

Os fatores de risco modificáveis são os que exigem maior focalização por parte da comunidade científica dada a possibilidade de prevenção. Entre os fatores modificáveis a hipertensão arterial (HTA) é o mais nefasto, sendo o risco significativo para tensões sistólicas superiores a 140mmHg e diastólicas superiores a 90mmHg.(1, 6) A patologia cardíaca valvular e a fibrilação auricular (FA) predispõem a formação de êmbolos.(6) Na insuficiência cardíaca e doença coronária o risco duplica, assim como na diabetes mellitus, não estando provado que o controlo da glicémia dentro de parâmetros normais diminua esse risco.(1, 6) A toma de estatinas tem demonstrado redução no risco da ocorrência de AVC em doentes com ou sem dislipidemia.(6) O papel da obesidade, dieta e sedentarismo ainda não está totalmente esclarecido.(1) Outros fatores de risco modificáveis descritos são os estados de hipercoagulabilidade, estenose da carotídea, enxaqueca, tabagismo, alcoolismo, apneia do sono, forâmen ovale patente, gravidez e período pós-parto.(1, 6)

 

5 – Tipos de AVC e etiopatogenias - Quanto à etiologia, o AVC pode ser classificado em isquémico (87%, trombótico ou embólico) e em hemorrágico (13%, intracerebral ou subaracnoídea).(1, 6)

A oclusão trombótica de grandes vasos (32% a 48% dos casos) surge em consequência de doença aterosclerótica cerebrovascular e/ou HTA.(1, 6) O quadro clínico associado tem, habitualmente, uma instalação gradual.(1) A oclusão dos vasos penetrantes profundos (13% a 18%) origina enfartes lacunares, ocasionando défices minor.(1, 6)

Os eventos embólicos (26% a 32%) podem surgir na presença de trombos cardíacos (FA, válvulas artificiais), embolia paradoxal ou placas ateroscleróticas instáveis.(1, 6) Os êmbolos paradoxais têm origem em tromboses venosas e atingem a circulação cardíaca esquerda (e consequentemente artérias cerebrais) por comunicação intracardíaca na presença de forâmen ovale patente.(6). O quadro clínico tem um início abrupto e com evolução variável pela possibilidade de lise e fragmentação espontânea do trombo.(6)

O AVC hemorrágico intracerebral surge por rotura de microaneurismática, nas artérias penetrantes, em doentes com HTA crónica.(1, 6) Clinicamente traduzem-se por quadros agudos de cefaleias e défices neurológicos de instalação rápida, estando a gravidade correlacionada com a extensão da hemorragia e edema cerebral.(1, 6) Podem estar associados a vómitos, rigidez da nuca e crises convulsivas.(1) As hemorragias subaracnoideias resultam habitualmente de roturas de aneurismas arteriais, localizados na base do crânio.(1, 6) Podem estar associados a sinais de irritação meníngea e crises convulsivas.(1, 6) A morte imediata ocorre num terço dos casos.(6) As malformações arteriovenosas apresentam-se como causa de AVC hemorrágico subaracnoideu em indivíduos mais jovens.(1, 6) Num terço dos doentes, ocorrem crises convulsivas ou cefaleia crónica prévias ao AVC.(6)

 

6 – Síndromes Vasculares Cerebrais - A relação entre os territórios vasculares afetados e a localização anatómica das funções cerebrais determina diferentes quadros clínicos. Procuraremos descrever os mais comuns, de acordo com os territórios mais frequentemente afetados.

 

6.1 – Síndrome da Artéria Cerebral Anterior (ACA) - O território vascular da ACA inclui a região mediana e paramediana do córtex frontal e a região lateral do hemisfério ao longo do bordo ântero-superior. Os vasos penetrantes profundos irrigam a cabeça do núcleo caudado e o braço anterior da cápsula interna.(6)

A oclusão arterial proximal é tolerada pela vascularização da ACA contralateral.(1) A oclusão distal origina hemiparesia e hemihipostesia contralateral de predomínio crural.(1, 6) A lesão frontal leva ao reaparecimento de reflexos primitivos (grasp e sucção), rigidez paratónica e em lesões extensas alterações comportamentais como distração fácil e perda de raciocínio lógico.(1, 6) A lesão do hemisfério dominante (HD) pode causar uma afasia transcortical motora.(1, 6) Poderá haver desvio óculo-cefálico para o lado da lesão e incontinência urinária.(1)

 

 

6.2 – Síndrome da Artéria Cerebral Média (ACM) - A ACM irriga a região lateral dos lobos frontal, parietal e temporal, e, profundamente, a corona radiata, o putamen e o braço posterior da cápsula interna.(6) A oclusão dos ramos superiores (áreas Rolândica e pré-Rolândica) resulta em défice sensitivo e motor contralateral na face, membro superior e, em menor grau, membro inferior; desvio óculo-cefálico para o lado da lesão; afasia de Broca (se HD) e défice espacial e apraxia (se hemisfério não dominante (HND)).(6) A recuperação funcional do membro superior é parca, no entanto, a maioria dos doentes adquirem capacidade de marcha autónoma. (6)

Os ramos inferiores irrigam o lobo parietal e temporal, originando hemianopsia homónima contralateral ou quadrantanópsia superior.(1, 6) Lesões do HD resultam em afasia de Wernicke; no HND verificam-se défices visuoespaciais com neglect contralateral, apraxia e aprosodia. A sensibilidade e motricidade não apresentam alterações clinicas.(1, 6) A oclusão da ACM na sua emergência resulta em hemiplegia completa, diminuição da sensibilidade e hemianopsia contralaterais.(6)

 

6.3 – Síndrome da Artéria Cerebral Posterior (ACP) - A ACP é responsável pela irrigação do tálamo, região medial do lobo occipital e região inferior do lobo temporal.(1, 6) A oclusão pode originar uma hemianopsia contralateral, prosopagnosia, palinopsia e se existir lesão no HD, alexia e afasia transcortical sensitiva.(1, 6) A isquemia talâmica pode condicionar hemianestesia com dor neuropática contralateral.(6) A oclusão dos ramos interpedunculares origina o Síndrome de Weber (paresia do nervo oculomotor com hemiplegia contralateral) e paresia do nervo troclear.(1)

 

6.4 – Síndromes Vertebro-basilares - As artérias vertebrais e a resultante artéria basilar irrigam o tronco cerebral, o cerebelo e a medula espinhal.(1, 6) Caracterizam-se pela comunicação com a vascularização contralateral, o que se traduz nos défices resultantes: défices sensoriomotores bilaterais assimétricos (ipsilaterais na face e contralaterais no restante hemicorpo) e sinais de envolvimento cerebelar.(1, 6) Poderão surgir sinais de envolvimento ipsilateral dos pares cranianos, disartria, disfagia, ataxia, vertigens, nistagmo e síndrome de Horner.(1, 6)

Um dos síndromes vertebro-basilares a salientar é o Síndrome de Wallenberg que surge por oclusão da artéria vertebral ou cerebelar póstero-inferior.(6) No lado ipsilateral à lesão, origina síndrome de Horner, hipostesia termo-álgica da hemiface e ataxia periférica com queda para o lado da lesão.(1, 6) Associadamente surge hipostesia termo-álgica do hemicorpo contralateral, disfagia, disartria e disfonia (paresia do palato e cordas vocais), diplopia, nistagmo, vertigem, náuseas e vómitos (núcleo vestibular).(1, 6) A oclusão da artéria basilar origina isquemia do tronco cerebral, que na lesão extensa leva à instalação do Síndrome Locked-in (tetraplegia com afasia motora, mantendo a sensibilidade, a compreensão, a visão e a audição preservadas).(1, 6)

 

7 – Avaliação diagnóstica - Maioritariamente a suspeita de AVC tem origem nas alterações do quadro clínico. A avaliação segue com exames imagiológicos (tomografia computorizada (TC) cranioencefálica ou ressonância magnética (RM)), que auxiliam no diagnóstico diferencial, identificação e extensão da lesão.(7) O estudo angiográfico (angio-TC ou angio-RM) pode ser útil na decisão terapêutica.(8)

Em todos os doentes com AVC isquémico devem ser pesquisados os principais fatores de risco cardiovascular, para esclarecimento etiológico e tratamento preventivo.(9) O estudo completo inclui análises sanguíneas, eletrocardiograma de 12 derivações, eco doppler carotídeo e intracraniano e ecocardiograma, se AVC isquémico (preferencialmente transesofágico pela melhor visualização da aurícula esquerda, válvula mitral, septo interauricolar e arco aórtico).(6, 7) Na suspeita de embolismo paradoxal, deve ser excluída uma trombose venosa com eco doppler dos membros inferiores.(6)

Em doentes jovens, os exames complementares deverão excluir coagulopatias (como défices de antitrombina III, proteína C e proteína S), vasculites, patologia reumatológica, homocistinúria e disseção de grandes vasos. No entanto, a prevalência de AVC idiopático é elevada, sem identificação de fatores de risco óbvios em 40 a 50% dos casos.(6)

 

8 – Tratamento do AVC na fase aguda - Na fase aguda, o objetivo do tratamento é reverter ou limitar a lesão cerebral e prevenir complicações imediatas.

A manutenção da permeabilidade das vias aéreas é fundamental.(7, 9) O controlo da TA, temperatura e glicémia têm mostrado benefício no prognóstico.(6) O efeito dos fármacos com caraterísticas neuroprotetoras contínua em estudo.(6, 9)

No caso do AVC isquémico, a reperfusão por trombólise intravenosa com ativador do plasminogénio tecidual recombinante é eficaz quando aplicada nas primeiras 3 horas após início do quadro.(6, 9) A trombólise intrarterial e a trombectomia mecânica são alternativas possíveis à trombólise intravenosa, quando esta não está indicada.(9)

No AVC hemorrágico, a cirurgia pode estar indicada nas hemorragias intracerebrais lobares com deterioração neurológica progressiva e nas hemorragias cerebelosas superiores a 3 cm, com deterioração neurológica secundária à compressão do tronco.

 

9 – Prevenção do AVC secundário - Os principais fatores de risco devem ser controlados pela alteração comportamental. A prática de exercício físico aeróbio, a cessação tabágica, o consumo moderado de bebidas alcoólicas e a implementação de uma dieta com baixo teor de sal (máximo 2,4g/dia), açúcar e gorduras saturadas e elevado teor de fibras são medidas recomendadas.(6, 9) O índice de massa corporal deve ser mantido dentro de valores normais-baixos.(7) Para melhor controlo tensional, glicémico e lipídico, poderá ser necessário a introdução de tratamento farmacológico.(9)

O benefício dos antiagregantes plaquetares (ácido acetilsalicílico, clopidogrel) está comprovado na prevenção de novo AVC isquémico.(6, 7) A utilização de terapia anticoagulante está reservada para doentes com AVC de etiologia cardioembólica. São exceção a esta terapêutica, os doentes com elevado risco de queda, epilepsia não controlada, hemorragia gastrointestinal ou fraca adesão terapêutica, onde se opta por terapia antiagregante plaquetar.(7)

Procedimentos invasivos, como a endarterectomia carotídea, reduzem o risco de recorrência na presença de estenose ipsilateral superior a 70%.(7) A colocação de um stent carotídeo ou a realização de bypass vascular, como alternativas à endarterectomia, estão indicadas em grupos específicos de doentes.(9)

 

10 - Reabilitação funcional - A abordagem terapêutica inclui uma equipa multidisciplinar, constituída pelo fisiatra, enfermeiro, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, terapeuta da fala, psicólogo/neuropsicólogo e assistente social. (14) 

 

10.1 - Conceitos introdutórios - O programa de reabilitação tem como objetivo a aquisição da máxima capacidade funcional e autonomia, quer através da recuperação de capacidades prévias, quer através de mecanismos de compensação. O princípio base consiste em facilitar/acelerar os mecanismos de neuroplasticidade – promovendo a recuperação em prol da compensação (reservada para aquando do atingimento do limiar máximo de recuperação).(6) A reabilitação deve ser iniciada o mais precocemente possível (doente clinicamente estável), apresentar objetivos específicos com dificuldades crescentes e/ou desafiantes para o doente.(12, 13). Identifica-se habitualmente 3 desenvolvidas inicialmente em ambiente hospitalar e progressivamente no domicílio e na no meio social do doente.

 

10.2 – Fase aguda do AVC – Trata-se de uma fase que decorre integralmente em ambiente institucional ao longo algumas semanas. Referimos de seguida os principais objetivos e desenvolvimentos terapêuticos que passam por limitar os problemas da imobilidade, promover independência no leito e estimular as diferentes respostas posturais e funcionalidades:

- Prevenção das complicações do decúbito e da imobilidade.

- Introdução precoce de estímulos sensitivos e motores, e o aumento progressivo da independência (no leito, nas transferências).

- Estimulação da atividade ideomotora.

- Prevenção precoce do desenvolvimento de alterações do movimento (tónus / espasticidade e atividade sincinética).

- Prevenção dos problemas tromboembólicos, com mobilização articular passiva dos segmentos paréticos, massagem manual de drenagem dos membros inferiores, aplicação de ligadura elástica, vigilância métrica comparativa de ambos os segmentos.

- Prevenção das alterações cutâneas, com posicionamentos alternados, higiene no leito (evitar rugas, migalhas, maceração cutânea por urina ou fezes), controlo nutricional, vigilância de zonas de hipoestesia ou anestesia cutâneas, vigilância acrescida perante síndromas febris, desequilíbrios metabólicos, entre outros.

- Prevenção dos edemas das extremidades, com mobilização articular passiva, posicionamento correto do segmento, massagem manual de drenagem, estimulação precoce da atividade motora.

- Controlo da disfunção vesicoesfincteriana, com dispositivos urinários e controlo citobacteriológico rigoroso, da retenção urinária, com drenagem contínua ou algaliação intermitente por método asséptico e da obstipação, com laxantes de volume, alimentação e hidratação adequadas.

- Introdução precoce da cinesiterapia respiratória no leito promovendo a mobilização torácica, o fortalecimento muscular do diafragma e dos músculos intercostais, ensino da tosse (e tosse assistida), introduzindo a drenagem brônquica postural (particularmente dos segmentos basais e posteriores, mais sujeitos ao decúbito).

- Vigilância dos problemas da deglutição que não sendo exclusivos da patologia vascular do tronco, podem colocar problemas diversos (risco de aspiração, disfagia- Intervenção neuromuscular precoce, limitando as complicações músculo esqueléticas (limitações articulares; retrações músculotendinosas), estimulando as atividades sensoriomotoras, inibindo os distúrbios do tónus, modulando a atividade sincinética e iniciando o trabalho de independência em atividades de vida diária (no leito e nas transferências).

- O correto posicionamento no leito, decúbito dorsal e decúbito lateral (com inibição de padrão espático e limitação da retração músculotendinosa).

- A mobilização articular, das cinturas à extremidade distal do segmento (membro superior / membro inferior), em padrão de inibição, evitando o traumatismo articular nomeadamente nos segmentos hipotónicos ou com menor controlo sensitivo.

- A mobilização autopassiva, precocemente ensinada e estimulada, percorrendo amplos sectores angulares (particularmente no membro superior).

- O trabalho ativo de mobilização articular (ativo e ativoassistido) nos segmentos paréticos ou com reduzida limitação funcional.

- O adestramento no leito, perspetivando a independência no leito, a retoma do equilíbrio do tronco, a transferência para cadeira, e a verticalização (estimulação postural).

- A estimulação sensorial favorecendo o contacto com objetos do quotidiano, com estimulação audiovisual, motivando o contacto e a interação com o meio; importa detetar precocemente deficites auditivos e visuais.

 

10.3 – A fase de evolução – Trata-se de um período longo que se desenvolve entre o internamento institucional e o ambulatório. Pretende-se desenvolver a reeducação neuromuscular, desenvolvendo uma abordagem global e secundariamente analítica dirigida ao membro superior (funções manipulativas) e ao membro inferior (funções de verticalização e marcha). Vai também promover abordagens específicas nas diferentes funções deficitárias e prover a atividades nas tarefas quotidianas.

 

10.3.1 - Controlo sensitivo e motor - A hemiplegia é a sequela motora mais frequente (88%).(6) A máxima recuperação funcional ocorre, em média, por volta dos 3 a 6 meses, podendo surgir algum grau de recuperação minor após esse período.(1, 6). Nas fases iniciais, deve-se prevenir o surgimento de retrações músculotendinosas e neuropatias periféricas, através de posicionamentos corretos, cuidados nas transferências, mobilizações polissegmentares passivas e ativas-assistidas e técnicas de alongamento (caso haja alterações do tónus muscular).(6) Após a fase aguda existem diversas técnicas para promover a reabilitação motora, que devem ser utilizadas concomitantemente. Nenhuma das técnicas apresenta evidência de superioridade, pelo que nunca devem ser utilizadas de forma isolada e unitária.(12)

A terapia tradicional consiste na aplicação de técnicas de posicionamento, exercícios de mobilização articular passiva/ativa, estiramentos, técnicas compensatórias e treino de resistência muscular, enfatizando a necessidade de repetição de movimentos específicos.(1) Neste contexto, a prática de exercício físico com fins terapêuticos, incluindo treino aeróbio, fortalecimento muscular e flexibilidade parece ter um papel importante na recuperação dos doentes.(10)

A facilitação neuromuscular propriocetiva baseia-se em movimentos em espiral e diagonais de forma a facilitar padrões sinérgicos de movimento com base funcional.(1) As técnicas de neurodesenvolvimento, como é exemplo a técnica de Bobath, têm como principal objetivo a inibição de padrões primitivos de movimento, de forma a normalizar o tónus muscular e facilitar padrões de movimento normais.(1) As técnicas de terapia do movimento, como por exemplo a técnica de Brunnstrom, utilizam padrões sinérgicos primitivos na tentativa de melhorar o controlo motor através da facilitação central.(1)

Essas técnicas podem ser complementadas por outras, tais como a estimulação sensitiva, técnicas de prática mental (através da imaginação do movimento pretendido), terapia com espelhos, técnicas de movimento induzido pela restrição do membro não afetado e estratégias auxiliadas por robótica e cenários de realidade virtual.(6, 10, 13) O recurso a ambientes virtuais tem vindo a aumentar, apresentando-se como estimulantes e bem aceites pelos doentes, contudo, a evidência da sua eficácia é apenas ligeiramente superior às terapias tradicionais.(16) Desta forma, uma vez que são recursos muito dispendiosos, defende-se a sua utilização parcial como adjuvante às restantes técnicas.(16) Técnicas de estimulação elétrica funcional, estimulação cerebral não invasiva e estimulação magnética transcraneana também têm apresentado alguma evidência de benefício, embora ainda pouco robusto.(6) A disponibilidade de feedback ao doente relativamente aos exercícios efetuados parece crucial, quer seja através de terapeuta, eletromiografia ou qualquer outro estímulo.

Têm surgido vários trabalhos que defendem que as intervenções farmacológicas podem ter um papel importante na recuperação motora e nas alterações da comunicação.(10, 17) Anfetaminas, dopaminérgicos e inibidores seletivos da recaptação de serotonina são os fármacos mais testados, embora a sua utilização ainda careça de evidência científica.(17) A utilização de ortóteses deve ser criteriosa e está reservada para auxiliar nos posicionamentos (manter/aumentar a amplitude articular de movimento passivo), facilitar a função ou aumentar o conforto.(14) As mais frequentemente prescritas pretendem a estabilização intrínseca de pé (equino varo espástico) e do joelho (recurvatum). A prescrição de auxiliares de marcha é frequente e sugere a ponderação do seu peso e a da sua estabilidade. O treino e a integração na comunidade no domicílio são necessários.

 

10.3.2 - Reabilitação da marcha - A marcha hemiparética é caracterizada por assimetria associada ao padrão sinérgico extensor do membro inferior, anca em extensão e adução, joelho em extensão e tornozelo em flexão plantar e inversão.(18) Estas alterações aumentam o consumo de energia necessária para a locomoção e põem em causa a segurança do doente.(18)

Todos os doentes devem iniciar o treino de marcha o mais precocemente possível.(14) Os objetivos iniciais são a aquisição de um bom equilíbrio estático e dinâmico do tronco e cintura pélvica, aquisição e manutenção do ortostatismo e capacidade de transferência e subir/descer escadas.(6) Nas fases iniciais, o treino de marcha em passadeira com suspensão parcial da carga parece ter benefício.(6) Sempre que se justifique, deve recorrer-se à utilização de diferentes produtos de apoio / auxiliares de marcha (andarilho, tripé, canadianas, bengala ou bastão). As ortóteses tornozelo-pé são as mais utilizadas nestes doentes, uma vez que facilitam a capacidade de destacamento do pé no início da fase oscilante e confere estabilidade à articulação na fase de carga.(14)

 

10.3.3 – Espasticidade - A espasticidade é a resistência sentida aquando da realização de um movimento passivo de estiramento em um determinado músculo, sendo velocidade-dependente.(6) Esta alteração é comum nas lesões de 1º neurónio, e resulta na hiperexcitabilidade das vias monossinápticas por alteração das vias inibitórias supraespinhais.(6) Destas alterações resultam posturas estereotipadas surgindo, normalmente, dias a semanas após o AVC.(19) Pode ter um importante impacto a nível funcional, condicionando alteração da postura em repouso, na execução da marcha ou na resposta a estímulos nocivos.(1, 6) O instrumento mais utilizado para a avaliação deste parâmetro é a Modified Ashworth Scale.(6) O padrão espástico, classicamente, é de sinergias flexoras dos membros superiores e de sinergias extensoras a nível dos membros inferiores.(6)

O tratamento engloba uma abordagem não farmacológica, através de técnicas antispásticas – alongamentos, posicionamentos (podendo envolver o recurso a ortóteses), agentes físicos (termoterapia, estimulação elétrica funcional, massagem manual); uma abordagem farmacológica, com antispásticos orais (baclofeno, diazepam e tizanidina) e técnicas invasivas (injeção intramuscular de toxina botulínica, bloqueio com fenol, implantação de bomba de baclofeno intratecal); ou ainda procedimentos cirúrgicos como recurso final.(6, 19)

 

10.3.4 - Alterações visuais - Na fase aguda, cerca de 20% dos doentes apresentam défice do campo visual.(6) Enfartes da circulação do tronco cerebral podem condicionar alterações dos pares cranianos, lendo ao aparecimento de diplopia. A recuperação dos défices visuais ocorre, por norma, nas primeiras semanas, sendo o prognóstico desfavorável caso se mantenha o défice após esse período.(6) A reabilitação tem por base exercícios orientados por terapeuta e com recurso a diversas tecnologias.(6) A reabilitação da diplopia, por norma, envolve a oclusão alternada do globo ocular.(6)

 

10.3.5 - Alterações da linguagem e comunicação - A comunicação é uma função complexa que envolve receção, processamento central e expressão de informação.(6) O discurso envolve não só a linguagem como também outros mecanismos para a produção de palavras – respiração, fonação e articulação.(6) A afasia é a alteração da capacidade em utilizar a linguagem devido a um dano cerebral, por norma, resultante de lesão do hemisfério dominante.(6) Há várias classificações das afasias; a mais geral divide-as em afasias motoras (não fluente, anterior ou expressiva) e afasias sensitivas (fluente, recetiva ou posterior), podendo as duas formas estar presentes concomitantemente - afasia global.(6) Ocorre em cerca de um terço dos doentes, a grande maioria com boa recuperação, sendo que aos 6 meses apenas 12% a 18% mantém este défice.(6) As alterações do discurso são a disfonia (alteração da emissão vocal) e a apraxia (alteração do planeamento motor e consiste na incapacidade de o individuo executar um movimento voluntário, apesar das capacidades motoras e sensitivas estarem preservadas).(6) O ritmo e a entoação do discurso podem também estás alteradas – aprosodia – normalmente no contexto de lesões do hemisfério não dominante.(6)

A avaliação da comunicação deve englobar não apenas testes convencionais, mas também situações de conversação, escrita, leitura e descrição do dia-a-dia.(11)

O período previsível de recuperação é superior ao dos défices motores, sendo que se podem observar melhorias significativas em períodos superiores a um ano.(6) A terapia da fala é adaptável aos défices específicos de cada doente, tendo como objetivo estabelecer formas de comunicação elementares – como por exemplo expressão consistente do sim e do não (mesmo que recorrendo a estratégias alternativas – como por exemplo gestos, desenhos ou dispositivos eletrónicos).(6) Pode ter interesse incluir nas sessões de terapia da fala os cuidadores e familiares diretos, de forma a facilitar a comunicação com o doente.(12) Nos deficites da linguagem, o programa de reabilitação aponta cada vez mais para a criação de modelos alternativos, possibilitando a substituição de funções. O recurso a soluções informáticas com diversos programas adaptados apresenta limitações inerentes ao padrão cultural do indivíduo, mas começa a ser uma realidade frequente.

 

10.3.6 - Alterações cognitivas – O delírio e a desorientação são alterações comuns nos períodos iniciais do internamento, sobretudo em idosos, resultando normalmente de alterações do padrão do sono, alterações hidroeletrolíticas, efeitos laterais da medicação e síndrome febris infeciosos.(6)

As alteração do estado de consciência, em AVC de grande extensão pode provocar sonolência, sobretudo se afetarem o tronco cerebral.(6) Por norma a recuperação é espontânea, dias ou semanas após o evento.(6) Neste contexto, deve-se avaliar o estado cognitivo, utilizando por exemplo o Mini Mental State Examination e caso se justifique uma avaliação neuropsicológica formal.(6)

No neglect, as alterações de perceção são decorrentes do défice no processamento da informação sensitiva que chega do sistema sensitivo primário, associadas sobretudo a lesões do hemisfério não dominante.(6) O neglect é caracterizado pela inatenção a estímulos visuais, auditivos ou táteis.(6) Existem diversas estratégias para acelerar a reversão deste deficite tais como a estimulação oculocinética, as técnicas de imagem mental e a estimulação propriocetiva.(11)

Alterações de comportamento estão mais associadas a lesões a nível do lobo frontal, normalmente manifestadas por abulia e défice de atenção.(6) A apatia normalmente está mais relacionada com a dificuldade em lidar com a nova condição e com a alteração dos papéis sociais e familiares.(6)

No caso da memória, caso se verifiquem importantes limitações neste contexto, devem ser introduzida medidas compensatórias, como estratégias internas (imagem visual e organização semântica) e externas (cadernos de notas ou dispositivos eletrónicos).(11) Não está comprovada a eficácia de medidas farmacológicas no contexto da reabilitação cognitiva após um AVC.(11)

 

10.3.7 - Deglutição e nutrição - A disfagia pode afetar até 40% dos doentes (sobretudo em lesões que englobem o tronco cerebral e em AVC bilaterais), sendo um fator de risco importante de pneumonia de aspiração, má nutrição, desidratação e outras complicações.(6, 11, 12) Tem um prognóstico favorável na maioria dos casos, com recuperação espontânea.(20) A avaliação deve incluir a função dos lábios, língua, bochechas e mandíbula, bem como a elevação da laringe durante a deglutição e a presença de tosse ou alteração da qualidade da voz após deglutição de líquidos ou sólidos.(6) Os testes não devem ser realizados em doentes sonolentos ou com alterações do estado de consciência.(6) Se houver suspeita de disfagia, deve ser realizada uma avaliação mais dirigida por parte de um terapeuta da fala e caso se justifique, pode-se recorrer a uma videofluroscopia ou fibroendoscopia da deglutição.(6)

A reabilitação deve ser focada nos défices específicos do doente, mantendo sempre a dieta menos restritiva possível.(20) Caso o doente tenha condições para manter uma alimentação via oral devem ser introduzidas algumas estratégias – alimentação em ritmo lento, pequenas quantidades, através de movimentos específicos da cabeça e pescoço, elevação da cabeceira, ou alimentação em posição ortostática, e ainda a utilização de espessante para os líquidos e dieta de consistência mais adequada.(1) Os doentes sem condições de segurança para a aplicação das estratégias descritas, necessitam de alimentação entérica.(1). As alternativas são as sondas nasogástricas (curta duração) ou gastrostomias / jejunostomias (longa duração) embora não eliminem completamente o risco de aspiração, uma vez que as secreções orais podem ser origem da mesma.(6, 11) Na fase inicial é essencial ter especial atenção para evitar o risco de desidratação ou má-nutrição dos doentes, devendo ser eliminadas as alternativas entéricas o mais precocemente possível.(6)

 

10.3.8 - Ombro doloroso do hemiplégico - Cerca de 70% a 84% dos doentes apresentarão queixas de omalgia referente ao lado hemiplégico, sendo que a maioria (85%) ocorrerá associada à componente espástica.(1, 21) Esse número tem vindo a diminuir nos últimos anos (40%) devido aos programas de reabilitação mais precoces e intensivos.(6) Esta queixa tem importante rebate funcional, podendo resultar de um conjunto de alterações: síndrome de dor regional complexo tipo I (SDRC tipo I), subluxação glenoumeral, espasticidade ou contraturas, bem como de lesões musculosqueléticas pré-existentes (tendinopatia da coifa dos rotadores).(6, 21)

O SDRC tipo I ocorre em 12% a 25% dos casos.(1) Resulta de uma desregulação do sistema nervoso simpático e consequente dor, alterações da circulação sanguínea e cutâneas.(1) O tratamento consiste em exercícios de mobilização, técnicas de dessensibilização, corticoterapia sistémica e analgesia (medicação e agentes físicos).

A subluxação glenoumeral resulta das alterações biomecânicas a nível do ombro, embora o mecanismo ainda não esteja totalmente estabelecido.(1) A utilização de ortóteses de posicionamento pode ser importante, mas a sua utilização deve estar limitada aos períodos de deambulação do doente.(1) O tratamento deve basear-se em posicionamentos corretos, estimulação elétrica funcional e mobilização/fortalecimento do mesmo.(1) A prevenção desta entidade passa por exercícios de fortalecimento precoces da cintura escapular, posicionamentos corretos e cuidados na tração do membro.(1)

A tendinopatia bicipital deve ser suspeita na presença de dor localizada na face anterior do ombro, dor à palpação da goteira bicipital e testes de Yergarson ou Palm-up positivos.(1) O tratamento deve ser inicialmente conservador e, caso necessário, devem ser instituídas outras medidas, tais como as ondas de choque radiais ou infiltrações de corticoides (importante identificar riscos associados, tais como o uso de antiagregantes ou anticoagulantes).(1)

Podem surgir outras alterações, nomeadamente musculosqueléticas (tendinopatia da coifa dos rotadores, capsulite adesiva, síndrome de conflito de espaço, dissinergia escapular, neuropatias periféricas e ossificação heterotópica) ou nervosas (lesão do plexo braquial, neuropatia periférica).(1) De uma forma global, o tratamento deve sempre enfatizar a melhoria da biomecânica e função do ombro lesado, concomitantemente com a abordagem terapêutica dirigida à patologia específica.(21)

 

10.3.9 - Dor central pós AVC - Resulta da lesão na via espinhotalamo-cortical, apresentando características de dor neuropática.(21) O tratamento baseia-se em técnicas analgésicas – massagem, dessensibilização, agentes físicos e psicoterapia.(21) Fármacos como antidepressivos tricíclicos (amitriptilina) e anticonvulsivantes (lamotrigina e gabapentina) podem ser úteis. Em casos refratários, podem ser efetuados bloqueios nervosos.(11, 21)

 

10.3.10 - Complicações médicas - Estima-se que cerca de 60% a 90% dos doentes desenvolvam complicações médicas na fase aguda pós AVC.(6) Referimos aquelas com mais impacto na morbilidade na função:

 

- Trombose Venosa Profunda (TVP) - A imobilidade aumenta o risco de desenvolver uma TVP. A profilaxia com heparina de baixo peso molecular diminui a incidência.(6) O diagnóstico precoce é fundamental de modo a iniciar o tratamento (anticoagulação em doses terapêuticas) o mais precocemente possível.(6)

- Convulsões - Ocorrem em 6% a 9% dos doentes. Podem surgir aquando da lesão, nas primeiras duas semanas (início precoce) ou após duas semanas (início tardio).(1) Estão normalmente associadas a idades mais avançadas, confusão e lesões hemorrágicas extensas dos hemisférios parietal ou temporal.(1) Frequentemente são do tipo tónico-clónicas generalizadas.(1) O tratamento é farmacológico, caso se verifique recorrência, não existido indicações para a sua profilaxia.(11)

- Depressão - Estima-se que cerca de 50% dos doentes apresentam sintomatologia depressiva, sobretudo entre os 6 meses e 2 anos após o evento agudo.(6, 12) Parece haver uma maior tendência em doentes com predisposição psicossocial, condicionada pela ansiedade decorrente da incapacidade adquirida (componente reativa).(6) Alguns estudos referem maior risco de depressão major em lesões frontais esquerdas ou bifrontais (componente orgânica).(1, 6) São fatores de risco importantes alterações psiquiátricas prévias, dependência nas AVD, género feminino, afasia não fluente, défice cognitivo e fraco apoio social.(1) Esta condição pode afetar de forma significativa o prognóstico do doente, pelo que a psicoterapia e o tratamento farmacológico precoce (inibidores seletivos da recaptação de serotonina) apresentam crucial importância para o sucesso do programa de reabilitação.(6)

 

 - Alteração vesicoesfincteriana - Mais particularmente referidas a alterações da função urinária ou intestinal:

* Trato urinário - Os problemas mais frequentes são as infeções do trato urinário (ITU), incontinência e retenção urinária.(6) Estima-se que 50% a 70% dos doentes apresentem incontinência no primeiro mês, diminuindo para 15% após 6 meses.(1) A utilização de sonda vesical deve ser limitada e suspensa o mais brevemente possível ou, caso necessário, substituir por regime de algaliações intermitentes.(6, 11) A urgência ou incontinência urinária podem resultar da desinibição do detrusor, sendo os fármacos anticolinérgicos relevantes neste contexto.(6) Outras estratégias são o tratamento de possíveis causas subjacentes (ITU), regulação da ingestão de líquidos, treino de transferência/capacidade de utilização de dispositivos urinários, treino vesical e, caso necessário, realização de estudo urodinâmico para melhor esclarecimento.(1)

* Trato intestinal - A incidência de incontinência fecal é de aproximadamente 31%, resolvendo-se normalmente nas 2 primeiras semanas.(1) O tratamento passa pela resolução de possíveis causas subjacentes (como gastroenterite), instituição de treino intestinal, treino de transferência e estratégias de comunicação.(1) A obstipação é outra queixa frequente, devendo ser adotadas diversas estratégias no tratamento, tais como a criação de condições de privacidade, o reforço da hidratação, as alterações da dieta (introdução de fibras), o recurso a fármacos (modificadores da motilidade intestinal ou procinéticos).(1)

 

- Complicações respiratórias - A aspiração (de conteúdo alimentar ou fluidos orais) decorrente da alteração da deglutição, é uma complicação frequente após AVC.(1) São preditores do risco de aspiração a presença de tosse anormal, tosse após deglutição, disfonia, disartria, alterações do reflexo do vómito e alterações da voz após deglutição (voz molhada).(1) Como consequência da aspiração, pode surgir uma pneumonia de aspiração.(1) É essencial uma avaliação cuidada neste contexto, devendo ser introduzidas medidas alternativas de alimentação o mais precocemente possível.(1) A introdução oportuna e dirigida de antibioterapia, bem como técnicas de cinesiterapia respiratória são fundamentais nestes doentes.

 

- Outras complicações – Referimos em particular o risco de queda, as alterações cardíacas e a sexualidade, pois todas elas de diferente forma interferem no risco de morbilidade e na funcionalidade.

 

* Quedas - As quedas são frequentes tanto na fase aguda como na de estado, decorrente das alterações sensitivas, dos défices da força muscular, da limitação cognitiva, depressão e polimedicação, entre outras. (12) Devido à imobilidade, a mineralização óssea está comprometida nestes doentes, pelo que exercício físico específico, a suplementação com cálcio / vitamina D e bisfosfonatos apresentam interesse terapêutico. (11, 12)

 

* Complicações cardíacas - Cerca de 75% do AVC decorre da existência de aterosclerose, hipertensão vascular ou patologia cardíaca. (6) Na fase aguda, podem surgir várias complicações como angina, hipertensão não controlada, hipotensão, enfarte agudo do miocárdio, insuficiência cardíaca congestiva e arritmias de novo. (6)

 

* Sexualidade - A disfunção sexual é uma queixa frequente (57% a 75%), (6) decorrente não apenas de défices adquiridos, como também de fatores emocionais (medo, ansiedade, baixa autoestima, receio de rejeição do parceiro).(1) É importante não esquecer que esta pode ser iatrogénica, consequente da toma de alguns antidepressivos, anti-hipertensores, anticonvulsivantes ou opioides.(6) Estima-se que 82% dos doentes recuperem espontaneamente alguns meses após o evento agudo, devendo ter um acompanhamento médico e psicoterapia de suporte.(1, 6) Os inibidores da 5-fosfodiesterase (Sildelafil e Taladafil) podem ter um papel importante na disfunção erétil. 

 

10.4 – Fase tardia – Pretende-se nesta fase continuar a reabilitação neuromuscular e promover o adestramento em atividades de vida diária, simples e instrumentais. O conceito de reabilitação comunitária adquire um crescente interesse promovendo o desenvolvimento de programas no domicílio e contribuindo para a inserção do doente no seu meio ambiente. (6, 14) Importa assim valorizar a locomoção (escadas, rampas), as transferências (cama, cadeira de rodas), a utilização de transportes (utilização transporte, a condução), a higiene pessoal (banho, lavar os dentes), a alimentação (preparação, confeção), o vestir (roupa, sapatos), as atividades domésticas (arrumações, limpezas), o controlo do ambiente (luz, água, precianas), a comunicação (escrita, telefone), as atividades de lazer (comunitárias, desportivas) e as atividades profissionais.

A reabilitação ambulatória é desenvolvida por equipas terapêuticas, envolvendo diversos grupos profissionais (médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, técnicos de serviço social, entre outros) segundo as especificidades regionais. Trata-se também de promover a readaptação do ambiente domiciliário, retirando barreiras arquitetónicas (escadas, rampas, portas estreitas, móveis, entre outras), adaptando divisões (casa de banho, cozinha, entre outras) e prescrevendo produtos de apoio para aumentar a funcionalidade. Ainda neste contexto os cuidadores informais (elementos da comunidade), com maior ou menor grau de formação assumem uma crescente importância enquanto elementos decisivos na dinâmica inclusiva (22, 23). A readaptação profissional assume-se como um dos últimos desafios ao programa de reabilitação, estando largamente dependente de uma estratégia nacional direcionadas à promoção do emprego protegido e dos incentivos laborais.

Nesta fase tardia da evolução e após atingido o potencial de reabilitação, importa manter de forma ativa e regular um programa de estimulação neuromotora que concilia a vertente lúdica no domicílio e no meio ambiente com a institucional apoiada em profissionais de saúde. Sabemos que em fases tardias do programa os fatores emocionais e sociais assumem-se como decisivos no contexto da participação, mas de acordo com a evidência importa não esquecer a necessidade de manter a estimulação neuromotora, em ambiente clínico, por forma a reduzir a deterioração do potencial e o crescimento de outras morbilidades associadas. (22, 24)

 

11 – Prognóstico – Genericamente o prognóstico vital depende da idade do doente, de antecedentes patológicos, da natureza e gravidade da lesão.(6) O prognóstico em enfartes lacunares é excelente; nas lesões de grandes vasos é mais grave quanto maior a área cerebral afetada.(6) Sabe-se que o AVC hemorrágico é mais mortal que o isquémico, apresentando taxa de sobrevivência na ordem dos 60% e 90%, respetivamente.(6) O risco de recorrência de um AVC no primeiro ano é de aproximadamente 12% a 25%.(1)

Quanto ao prognóstico funcional, é pior se se verificar plegia completa do membro superior, ausência de preensão após 4 semanas, espasticidade proximal grave e 7 ou período flácido prolongado. Relativamente à deambulação, estima-se que 54% a 80% dos doentes readquiram uma marcha autónoma 3 meses após o evento.(6) Entre 47% a 76% dos casos, tornam-se independentes na realização das AVD.(6)

Variáveis sociais têm grande importância no prognóstico, sendo a condição social, o suporte familiar e de amigos determinantes na reintegração no domicílio ou instituição.(6) Sistematizando a necessidade de cuidados (25) diremos que 20% do AVC não necessita de programa exigente, considerando-se possível uma rápida normalização das atividades quotidianas com reduzidas funções deficitárias. Outros 20% irão demonstrar profundas limitações funcionais e um mau prognóstico funcional sendo adequada a implementação de programas de reabilitação assistidos no domicílio (adequação do domicilio, treino de transferências, treino de deambulação em cadeira de rodas e verticalização assistida, entre outros). Os restantes 60% iram beneficiar com todo um vasto programa de reabilitação já anteriormente descrito.

Concluindo esta abordagem preditiva, enunciamos elementos de prognóstico funcional, a considerar no âmbito da consulta médica:

 

 Elementos gerais de prognóstico – a idade, o acidente vascular anterior, a incontinência ou retenção esfincteriana, as perturbações visuopercetuais e gnósicas (esquema corporal, organização espacial, práxicas), as alterações do estado de consciência mantidas, a hemianopsia e o momento de início de programa de reabilitação

Elementos de prognóstico para retoma de marcha – a idade, a lateralidade (limite temporal acrescido para os avc esquerdos), o desequilíbrio postural (tronco e membros; posição sentado e em pé), as alterações vesico-esfincterianas, a imagem de TAC (nos acidentes sílvicos superficiais e profundos), a pontuação dos índices de função (Barthel; MIF, PULSES, entre outros).

Elementos de prognóstico para o membro superior (segundo Twitchell) - retoma de atividade reflexa miotática às 48 horas, atividade sincinética e atividade motora voluntária em grupos flexores aos 10 dias, elementos sinérgicos dos grupos flexores e extensores progressivos, preensão reflexa antes dos 20 dias, preensão ativa entre os 25 a 40 dias, retoma funcional antes do 3º mês, espasticidade ligeira e estabilizada entre os 10 e 18 dias.   

 

12 - Referências bibliográficas

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